07/09/2009

Me lembre de não jogar com a morte

 Me lembre de não jogar com a morte

Puro Osso

Por: Alex Nunes

O dia estava seco, claro, quente o bastante para usar uma regata, mas não estava abafado, Rafael tinha cochilado no sofá depois do almoço, quando se levantou a sensação de leveza era muito boa, ao terminar de se espreguiçar abriu os olhos e se viu dormindo no sofá

Passou a mão na cabeça esfregou os olhos mas quando abriu novamente, continuava lá no sofá dormindo, dormindo não é bem a palavra correta, mas ele entendia o que estava acontecendo, era tudo tão normal, sentia a temperatura do chão sob meus pés, respirava e tudo mais, quando ele ia beliscar o próprio braço, o braço do Rafael dormindo no sofá, ouvi:

– Não precisa fazer isso, você já sabe o que aconteceu.

Ele se virou na direção da voz e viu um camarada sentado no outro sofá da sala que ia dizer algo quando foi interrompido por Rafael:

– Quem é você?

– Pois é, você quase conseguiu não fazer essa pergunta, mas para que não exista dúvida nenhuma, sou a sua morte e vou te levar até a porta.

– Até a porta, que porta?

– Da sua passagem.

– E o que tem atrás da porta?

– O que você merecer.

– Que processo burocrático, qual a necessidade de te mandar até aqui pra me levar lá, não poderia acordar direto do outro lado da porta?

– Poder, podia, mas como existem essas perguntas que sempre são feitas, eu tenho que fazer sua preparação, para quando você chegar ao outro lado, essa parte aqui já esteja completamente resolvida.

Vejam só, Rafael estava ali vendo a própria morte, um sujeito com uma aparência tão normal quanto a de um funcionário de um banco, eram tantas perguntas, tantas dúvidas, uma delas era, se valia a pena questionar todas elas.
Então escutou a morte resmungar:

– Ai caramba esse vai dar trabalho.

– Que trabalho posso dar, estou morto?

Nesse momento o funcionário do banco fez uma cara tão feia, seus olhos viraram bolas de fogo e gritou uma coisa que ele não entendeu, mas tinha certeza que não era nada de bom, no mínimo um palavrão e depois disse:

– Cara eu já vi onde isso vai nos levar, eu vou encurtar o caminho que percebi que você quer pegar, mais hora menos hora você vai perceber que eu tenho que te responder todas as perguntas que quiser até achar que está pronto pra atravessar a porta, a maioria não percebe e aí depois de algumas lamurias o cara se cansa e diz tudo bem onde é que é essa porta e pronto trabalho concluído, mas com tipos iguais a você isso pode durar uma eternidade então por isso já estou falando, tenho que te responder tudo até que você queira realmente saber o que tem atrás da sua porta, pra saber abrir e entrar, então pergunte.

Eram tantas, mas Rafael não conseguia definir a ordem das perguntas, do que morreu, essa mesmo já não fazia mais diferença então de supetão disse:

– Acho que por enquanto não quero perguntar nada.

– Então ótimo, você quer saber o que te espera atrás da sua porta?

– Também não.

Outro palavrão. – Você não vai perguntar onde está a foice o capuz, porque eu não sou uma caveira?

– Não, se você apareceu assim pra mim, você é assim mesmo, ou por algum motivo não quis me assustar ou ia gerar mais perguntas, o que eu já vi que você não gosta. O que acontece se eu não quiser perguntar nada agora e quiser passear por aí?

– Até que em fim começaram as perguntas, não acontece nada, você fica zanzando por aí.

Então Rafael resolveu ver o que se conseguia fazer neste estado, de cara viu que não dava pra interagir com nada, mas o resto parecia que era igual, saiu do apartamento foi até a padaria ouviu as mesmas piadas do Chico, só que não eram direcionadas pra ele, mas riu do mesmo jeito.

O morte estava sempre do seu lado, às vezes irritado, mas agora parecia que estava pensando no que ia argumentar para fazer ele tirar as dúvidas e assim estar preparado para entrar na porta.

Rafael percebeu que tinha que fazer tudo a pé, por causa daquele lance de ser tipo fantasma, atravessa tudo, sentou num táxi, mas quando o taxi saiu, ele ficou.

O morte sabia que com o tempo Rafael iria aprender muitas coisas, até mesmo interagir com as coisas mas como ele não queria perguntar nada, ia demorar um tempão para aprender sozinho e o morte tinha mais o que fazer e disse:

– Logo, logo, você vai se entediar de ficar andando a pé, olhando e ouvindo as conversas dos outros sem poder fazer nada.

– Pode ser mas, até agora está legal, parece um filme 4d, com cheiro e sensações, por enquanto está legal mesmo.

Rafael foi fazendo tudo que queria e que podia fazer, o morte nem o acompanhava mais, só aparecia quando Rafael lembrava que estava morto, acabou que por esse motivo o morte passou um bom tempo sem fazer o trabalho dele e lhe propôs um acordo.

– Escuta aqui, o que você acha de ficar vagando por aí enquanto eu vou trabalhar com quem interessa e quando realmente se cansar eu te darei as respostas que você precisa para fazer a passagem, mas te digo uma coisa, um dia, mesmo que demore, você vai querer saber, e nesse dia vou te dizer tudo de uma vez e você vai atravessar a sua porta.

– Justo!

Nesse instante o morte desapareceu, mas nem por isso deixou de vê-lo, as vezes Rafael estava em algum lugar e plau, uma batida de carro, alguém morria e lá estava ele, mas Rafael nunca conseguia ouvir o que ele dizia para a pessoa, outras vezes não era ele mas vinha fazer o mesmo serviço.

O tempo foi passando, às vezes ele encucava e escolhia uma pessoa para acompanhar, ficava dias vivendo numa casa como se fosse da família, às vezes chegava a gostar de alguém e tentava ajudar de alguma maneira, falava no ouvido, tentava entrar na frente, mas a interação era zero.

Quando percebia que alguém ia se dar mal ele se afastava, ia para outro lugar, pois não havia nada que ele pudesse fazer, então procurava achar lugares alegres, percebeu que não existe um lugar feliz, existiam lugares alegres com momentos de felicidade, mas um lugar feliz todo o tempo, ele ainda não tinha achado.

Ainda não conseguia definir se sentia ou não as coisas, pois conseguia achar uma coisa engraçada, conseguia achar uma coisa chata, ver o que é certo e o que é errado, mas não conseguia entender se ficava triste ou feliz, preferia estar em lugares que proporcionavam a alegria, não sentia fome nem frio, última coisa que sentiu com o tato foi o chão do apartamento porque tinha acabado de morrer.

Ficou curioso, mas decidiu não chamar o morte para saber isso.

Vagar é uma coisa estranha muito solitária, mas não muito mais do que já era em vida, era filho único, os pais haviam morrido e não tinha amigos de verdade, estava se adaptando bem.

Era como ir ao cinema com alguém que só quer prestar atenção no filme, uma vez que o filme começa você está sozinho.

Algumas respostas Rafael conseguiu na prática, nesse estado e com o acordo que fez o que mais tinha era tempo.

Fazia tudo o que conseguia, quando aceitou de vez que estava morto, viu uma linda mulher e a seguiu, esperou até o momento que ela fosse tomar banho, as sensações até antes de vê-la nua, eram de expectativa, uma certa ansiedade, foi quando descobriu que não existe a excitação, nem nada fisiológico, a mulher não tomava banho fazendo caras e bocas nem poses sensuais, sem contar que muitas são muito mais interessantes vestidas.

Foi dando cada vez menos importância pra esse tipo de coisa.

haviam coisas legais também, passou uma semana que todas as noites depois dos passeios voltava para casa da Antónia, uma das mulheres que viu tomando banho, mas muito mais legal que isso, era que toda noite ela deitavam e antes de dormir lia um livro.

Para Rafael ver todas as reações dela, aquilo era a maior diversão, não queria saber mais nada sobre ela para não quebrar o encanto, ela parecia ser uma ótima pessoa, parecia ser meiga, doce, adorável, só que ele aprendeu que nem tudo é o que parece, então só entrava no quarto dela quando ela se trocava para ir dormir e pegava o livro, fez muito esse tipo de coisa pois assim não ficava chateado com ninguém.

Certa vez se apaixonou por uma outra linda garota, estava o tempo todo do lado dela, ela tinha acabado de sair de um relacionamento, estava na fase querendo viver a vida, eles iam ao cinema, corriam pela manhã, várias tardes lendo no parque, a parte ruim é que as amigas viviam tentando apresentar uns caras pra ela, mas Rafael sempre deu sorte porque ela estava muito feliz nessa fase com ele, claro isso é o que ele fingia ser, ele gostava de tudo que ela gostava, desde que morreu e até mesmo de antes, quando ele estava vivo não gostava tanto de estar com alguém como gostava de estar com ela, não existe nada mais triste que a solidão e ele havia aprendido a esquecer a solidão completamente enquanto esteva com ela.

Ele parou de planejar o que ia fazer, porque sabia que o tempo não importava tinha todo o tempo pra fazer o que eu quisesse então adiou tudo pra ficar com ela, adiou os planos de viajar o mundo a pé e aprender tudo o que fosse possível, adiou tudo, estava amando, não achou que era possível amar nessa condição, aquilo era a coisa mais perto do amor que já tinha sentido, só por acordar ao lado dela, por respirar, por chorar nas novelas, por tudo que ela gostava, ele amava fazer isso.

Até que um dia estavam na sala e o morte apareceu em pé na frente da televisão.

– Ainda não estou a fim de atravessar a porta. – Rafael disse como quem diz estar muito bem obrigado.

– Eu não vim buscar você.